O grande capital, ademais de jogar às urtigas seu preposto de hoje, ainda dita o que quer como modus operandi da sucessão, que deve ser operada “sob segurança” (isto é, sob sua vigilância e sob seu comando), colocando o insosso Rodrigo Maia na Presidência, mediante eleição indireta, pelo Congresso, e já adianta a ordem capital: a equipe econômica terá de ser mantida. Essa ameaça, a solução prussiana, por cima, confirma o permanente exílio do povo, afastado uma vez mais das decisões políticas que lhe dizem respeito, pois as classes dominantes, ou o “mercado” (o que quer que seja isso), não se conciliam com a democracia representativa, cujo fundamento é o voto.
A manobra anunciada, mera troca de peões, não altera a qualidade da crise de representação que corrói a democracia, e não livra nem o Executivo nem o Legislativo da insanável ilegitimidade que os une como irmãos germanos. A mudança de Manuel por Joaquim é a segurança de que a ordem vigente não se altere, é a troca que se faz para que a mudança fundamental, política, com a derrota do neoliberalismo conservador, não se opere. E para que tudo permaneça como está é fundamental afastar o povo desse processo, espaço da ação exclusiva do grande capital e de seus interesses, que jamais se confundiram como os interesses majoritários da sociedade brasileira, na contramão dos quais sempre operaram os donos do poder..
Em palestra para empresários paulistas, o deputado Rodrigo Maia, o príncipe anunciado, assegurou aos seus ouvintes que a Câmara que preside estava a serviço do mercado. Esta é sua credencial, este é seu currículo.
O bloco no poder, que tomou de assalto o Estado e a economia, realiza, sem mandato, uma verdadeira razzia contra os interesses populares: as ‘reformas’ trabalhista e da previdência são apenas tópicos, graves mas apenas itens destacados de um planejamento de longo prazo e mais largo, que visa à destruição de qualquer ideia de Brasil-potência, de país desenvolvido e independente, e, por tudo isso, inclusivo. Daí o primado do monetarismo, o desinvestimento, a destruição da ciência e da tecnologia, o abandono do ensino público, a degradação das infraestruturas, o desemprego e a recessão, o crescimento do subemprego e do lupenato que a terceirização aprofundará, a queda generalizada de renda ao lado de sua maior concentração. Diz a manchete d´O Globo de domingo (9/7/17): “Retrocesso social. Crise pode levar Brasil de volta ao mapa da fome”.
O Brasil industrial sai de cena para que nos tornemos produtores de grãos e matérias-primas, para exportação. O esforço visando a acentuar a personalidade sul-americana cede lugar a cediças, antiquadas, retardadas concepções de ‘segurança hemisférica’, que não escondem o servilismo ideológico e o velho e sempre presente sentimento de ‘vira-lata’, tão entranhado nos valores da burguesia brasileira.
Mas é preciso dizer que essa política antinacional e anti-povo não é obra pura e exclusiva de um Executivo a serviço da luta de classes, representando os interesses do capital rentista: esta é, porém, uma política compartilhada pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário, apoiada na grande imprensa e festejada pelo capital internacional.
Nessa programada defenestração de Temer e nomeação de Rodrigo Maia (o “Botafogo” das listas da Odebrecht) o Congresso, mais uma vez, será chamado para homologar a conciliação engendrada pelo alto, e uma vez mais, distante dos interesses da nação e da vontade popular, dará moldura constitucional para mais um golpe, dentro do golpe em progresso inaugurado com a deposição da presidente Dilma Rousseff. Enquanto 85% da população brasileira pedem eleições diretas – a única saída para o impasse institucional no qual nos estamos afogando –, o Congresso brasileiro está sendo convocado pelo ‘mercado’ para eleger um novo presidente, o qual, independentemente de nomes (embora a hipótese Rodrigo Maia seja um agravante) nascerá impossibilitado de governar, carente de legitimidade e de representação.
Com ele, e por isso mesmo é o delfim, permanecerá a política econômica terceirizada e entregue ao mercado financeiro, e, assim, antidesenvolvimentista e concentradora de riqueza e renda. Tanto quanto o atual governo, o eventual produto de eleições indiretas, seja quem for, será um governo ilegítimo por natureza (pois carece da consagração do voto popular) e ilegítimo ainda mais pois sua assunção será devida a um parlamento desonrado pelo controle que sobre ele exerce o poder econômico, seu grande e ouvido eleitor.
Até quando a República – sempre por firmar-se – poderá conviver com poderes abastardados, a saber, um Executivo na contramão da soberania popular, um Legislativo desnaturado pelo poder econômico (que degenerou o processo eleitoral e deslegitimou o mandato), e um Judiciário que não respeita a Constituição e não promove a segurança jurídica? Aliados em seus erros, esses poderes contribuem para a desmoralização da política, sem a qual não sobrevive a democracia representativa, construindo em nosso povo o desalento, a desesperança que destrói o sentimento de nação.
O descarte de Temer interessa a todos, mas ao povo e ao país não interessam nem a sucessão entre iguais, nem a via indireta que trapaceia a vontade popular, nem muito menos a manutenção dessa ordem neoliberal e autoritária que nos governa. O que o “mercado” propõe e os jornalões (seus porta-vozes) trombeteiam é a saída de Temer como jogada para poder salvar, aprofundando-o, o projeto conservador. Oferecem-nos os anéis de ferro para conservarem os dedos sujos.
Nossos parlamentares, em sua maioria, são acionados pelo poder econômico que financia as campanhas eleitorais, financia os mandatos e cobra resultados. Não há doações, mas investimentos que requerem dividendos. É assim que temos como ‘eleito’ um poder cego e surdo aos interesses populares. Assim, o poder econômico, os donos do dinheiro, aliado ao poder politico, degenera o processo eleitoral e torna maculado de ilegitimidade o mandato. Por isso, o povo não se sente representado pelos seus representantes, que, ilegitimados, não têm representação nem mandato, seja para proceder às reformas que estão aprovando, seja muito menos para eleger o presidente da República.
Na outra ponta, ao invés da consolidação do statu quo, o país necessita deter a desconstituição da economia nacional, a desconstituição da política, do Estado e da ordem constitucional, daí a urgência do ‘Fora Temer’, palavra de ordem-síntese para dizer fora o projeto conservador. A nação, que resiste ao atual regime, quer revogá-lo, desfazer sua política e refazer o projeto de Estado social, a partir da eleição de um presidente comprometido com os interesses majoritários da nação e de seu povo.
Esse projeto, inegociável, cobra eleições diretas e legítimas.
As mudanças são necessárias e urgentes, e exigem que o povo-massa retorne ao proscênio. Nenhuma solução de algibeira aplacará a crise. Ao contrário, a tendência é de seu agravamento. As consequências são imprevisíveis (e certamente indesejáveis), mas a História mostra que muitas vezes a anomia esconde a rebeldia, que explode quando menos se espera.
Nenhuma solução duradoura, repito, passará ao largo da legitimação do poder pelo crivo da soberania popular, e em face do jogo do Mercado, aberto, fica ainda mais necessário o pleito das Diretas Já, primeiro passo para a eleição de um presidente comprometido com o país. Mas, em qualquer circunstância, mesmo a imprescindível eleição direta para concluir o mandato surrupiado de Dilma Rousseff será sempre um ponto de partida para uma revisão constitucional apta a passar o país a limpo, revendo o processo eleitoral e as competências dos poderes, os republicanos, e aqueles outros, como o antidemocrático monopólio da comunicação.
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
Fonte: Blog do autor